17.2.06

Toda A Mente É Danada (8)

A mente de Elder venceu a imobilidade de Vincent e o dedo deste premiu o gatilho. A película transparente transformou-se numa poalha de cristal que se espalhou pelo chão da sala e a bala atravessou os delicados circuitos neurotrónicos, destroçando as ligações cimentadas ao longo de anos de raciocínio intenso. Ouviu-se um grito de dor e a voz da máquina gritou o seu nome. Vincent caiu no chão mas Elder sentia-o livre, a actividade do seu cérebro recomeçara do nada anterior.
- Não precisava de ter sido assim... – a voz da máquina era fraca, mas ainda se notava o seu tom doce e calmo – Podíamos ter resolvido tu...do se... me deix...assem fa...lar... com ele. Agora... libertaram-no...
A voz extinguiu-se e os rastos de luz no complexo neurotrónico tornaram-se esparsos e fracos, caminhando rapidamente para a extinção. Vincent estava de joelhos a observar a cena e eu aproximei-me e ajudei-o a pôr de pé. Estava ofegante como se acabasse de fazer um esforço violento.
- De repente desapareceu tudo... Não foi como perder os sentidos, foi algo de mais radical e provocou um buraco na minha memória. Foi como se, por momentos, tivesse deixado de existir. – olhou para a máquina moribunda – Estão a tornar-se um hábito para mim, estes tiros no escuro, mas pelo menos agora acertei em quem devia, apesar de ter sido auxiliado.
- Sabias que no século XX os computadores eram construídos com um dispositivo que se chamava transistor? – Vincent olhou-me e sorriu. Eu insisti:
- E que não possuíam qualquer capacidade de raciocínio? – caminhámos lentamente lado a lado e saímos da sala. Um cheiro enjoativo de coisa queimada seguiu-nos quando atravessámos a porta.

- É escusado... Escapou completamente ao nosso controlo e divaga agora por onde só Deus sabe.
- Raios, Heigelt! Explique-me o que aconteceu para ver se percebo. Essas tiradas filosóficas não me dizem absolutamente nada! – o General Hastings estava apoplético. Heigelt respondeu-lhe com a calma de quem se sabe derrotado.
- General, nós só montámos um cenário que possuía fortes possibilidades de nos conduzir à revelação dos códigos, mas o cérebro de Doneghan (ou deverei chamar-lhe Pramitt?) tomou o freio nos dentes. Da primeira vez conseguimos controlar a singularidade e devolvê-lo à realidade induzida mas a segunda tentativa foi-lhe fatal, ou melhor, foi-nos fatal, porque ele deve estar bem. Já não está aqui nem voltará mais. O cérebro dele torneou sempre todas as dificuldades e obteve sempre explicações que consolidaram a sua ideia de que aquele mundo era o mundo real. Para ele éramos nós a ficção. – voltou-se para o nervoso general – No fim de contas, o que é a realidade?
Afastaram-se do corpo vazio estendido na mesa cirúrgica. As luzes apagaram-se e a sala ficou escura e fria. Na escuridão do silêncio só a respiração compassada do corpo inútil se ouvia.

Um truque barato! Foi com um efeito fácil de filme de terceira categoria que o JIM o tentara intrujar! Não chegara à posição que alcançara deixando-se enganar por truques baratos.
A visão de Phoebe fez com que tudo o resto fosse atirado para um beco escuro da memória.
- Elder!! – abraçou-o com força e beijou-o – Acabei de ver na televisão a notícia sobre a destruição do JIM, mas penso que será melhor não vos perguntar nada sobre o assunto. Era ele o assassino?
- Como sabes?
- Querido Elder, não sou propriamente estúpida! – fingiu indignação para logo o abraçar novamente – Tenho comida lá dentro para os dois. – disse alegre.
- Não sei se coma, não me sinto muito bem, deve ter sido aquele peixe sintético... – Phoebe e Vincent olharam para ele – Esqueçam, vamos para dentro comemorar.
Peixe sintético?, pensou. A mente era mesmo uma coisa estranha... De onde provinha aquela memória? Não se preocupou minimamente por não encontrar resposta.
E também nunca perguntaria ao JIM...

Na Universidade de South Fillmore o sol iluminava generosamente as fachadas venerandas dos edifícios, espalhando a calma dormente de um fim de tarde de Verão pelo mundo. O homem aproximou-se de um dos pequenos edifícios que serviam de habitação aos professores e tocou à campainha de uma das portas. A placa de metal dizia Prof. Alan Moldrow, Dep. de Neurotrónica e Matemática Multidimensional.
- Sim? – o homem que abriu a porta possuía uma barba rala já branca e uns óculos redondos de aros metálicos.
- Professor Alan Moldrow? – o homem da barba confirmou.
- Sou o seu novo assistente, Jim Kovak.
- Ah, estava à sua espera, entre por favor!
A casa era acolhedora e estava escrupulosamente arrumada, o professor não era um génio desorganizado.
- Foi uma pena o que aconteceu ao seu anterior assistente, era um jovem brilhante.
- Sim, foi uma pena... Ele que nem era dado às velocidades foi logo morrer num acidente de automóvel, e na altura em que eu estava a necessitar mais do auxílio dele, com este projecto do novo supercomputador. Digo-lhe mais, senhor Kovak, este vai ultrapassar em muito as capacidades do falecido JIM! Sente-se, por favor.
O homem tropeçou e quase caiu. Por vezes ainda se atrapalhava com o seu novo invólucro.
- Não duvido, Professor, não duvido. – disse JIM Kovak com um sorriso.

FIM

Toda A Mente É Danada (7)

- A realidade induzida tem sempre pontos de fuga relativa, mas fomos felizes neste caso. Conseguimos reconduzi-lo à linha principal da acção quando o seu cérebro a tentou controlar e conduzir.
A voz era clara apesar de não a conseguir ouvir e a sala, agora intensamente iluminada, era a mesma em que já antes emergira por um instante, embora nessa altura estivesse escura e fria. O homem que falara usava uma bata branca e era muito alto.
- A acção deve estar a atingir o clímax e então saberemos tudo o que queremos.
- Professor Heigelt! Temos problemas outra vez, e bem graves! A acção induzida foi completamente distorcida, ele fugiu! O ponto de fuga atingiu a ruptura e ele deve estar a emergir aqui.
Abri os olhos e levantei-me. Sentia-me tonto e tudo aquilo era muito confuso. Onde estava eu?
- Raios!! Temos de começar tudo de novo, Dreyfuss. Mr. Doneghan, sente-se bem?
Ele falara comigo? Sim, ele falara comigo! O meu nome é Doneghan? Não, o meu nome é Pramitt! Será?

Os ramos das árvores do imenso jardim eram a única coisa que se movia na cena enquadrada pela janela. Caía uma chuva miúda de gotas tímidas que o solo tragava sofregamente, mas eu não sentia o cheiro da terra húmida. Era impossível senti-lo porque nada daquilo existia, tratava-se apenas de uma ilusão bem feita para evitar a claustrofobia. Ali, uma dezena de quilómetros abaixo da superfície mil vezes queimada, não havia sol, nem árvores, nem vento ou chuva. Atrás do painel da janela falsa existia apenas rocha negra, crusta furada pelos vermes que nós éramos.
As memórias regressam aos poucos, uma coisa hoje, um facto importante amanhã, e de cada vez que isso acontece cai mais um pedaço da minha anterior ilusão.
Chamo-me mesmo Doneghan, Albert Doneghan, e ontem a minha esposa veio visitar-me. Trouxe-me chocolates sintéticos e um pouco de carinho, apesar de eu não a reconhecer na altura. Hoje já me recordo de alguma coisa: casámo-nos há quatro anos, antes do ataque 14, e sei que não temos filhos. O espaço também não é muito...
Estou aqui porque sou importante. Uma importância macabra, mas vital. Descobri que sou o único sobrevivente do silo Kellett e que sou assim o único ser vivo que conhece os códigos de lançamento dos mísseis que lá continuam incólumes. Se na altura do ataque não estivesse numa cápsula de manutenção teria perecido também. Tive sorte.
Nisto tudo existe apenas um problema: não me recordo dos códigos. O meu cérebro criou um bloqueio como reacção ao choque horrível que sofri. Ainda hoje não recordo coisa alguma do que se passou no silo Kellett. Eles tentaram tudo sem êxito e a última desesperada tentativa fora a realidade induzida, mas também isso falhara. O meu cérebro obstinado tinha por duas vezes tentado tomar as rédeas da história e da segunda vez quase o conseguira, se não tivesse acontecido a ruptura. Agora convalescia para nova tentativa, sem estar muito certo da necessidade de aniquilarmos finalmente o inimigo. Aqueles mísseis eram os últimos e podiam decidir a guerra longa de séculos.
Na superfície ninguém vivia, por duas razões bem fortes: ficariam expostos a um ataque e, na realidade, a vida tornara-se impossível no inferno de neve e cinza que era a Terra. Para dizer a verdade, não era só neste bunker extremo que não existia sol. Também à superfície os seus raios não penetravam a espessa camada de fumo e poeiras sempre renovada que cercava como um véu de pudor a nossa triste Terra.
Restavam poucos, inimigos sempre, enfiados como toupeiras nas suas cidades do subsolo, tentando destruir-se sempre, gastando os escassos recursos numa guerra inútil em que a razão (se existira alguma vez) que um dos lados pudesse ter já se perdera há muito, algures numa das muitas crateras da superfície.

A comida tinha gosto, e se não soubesse que provinha da síntese química diria que aquele belo peixe tinha sido pescado num mar azul banhado por um sol de Verão, mas da sopa espessa e negra, nauseabunda, que enchia os locais dos antigos mares nada vivo podia sair. Era uma boa imitação, mas nunca sulcara os oceanos e, pensando bem, aquele pedaço de matéria nunca fora sequer animado pela vida. Estava mais forte de dia para dia e a letargia provocada pelo processo de realidade induzida desvanecia-se em ritmo acelerado, voltando ao meu cérebro as recordações verdadeiras da minha verdadeira vida. Não eram grande coisa, as recordações: os meus pais tinham sido mortos no ataque 5 ao Grande Refúgio do Norte, tinha eu apenas cinco anos. Fui entregue ao cuidado do orfanato do estado e educaram-me para ser um bom soldado e saber para que serviam todos aqueles botões dos sistemas de lançamento. Fora colocado no silo Kellett com 23 anos e fora lá que conhecera Lisa e que casara um ano depois. Lisa fora visitar os pais quando se deu o ataque ao silo e isso fora o seu passaporte para uma vida mais longa. Lisa não sabia os códigos, o que era uma pena. Seria? Qual o interesse em aniquilar outros iguais a nós, escondidos em tocas como nós, que como nós lutavam sem nenhuma razão, transformados em caricaturas de seres pensantes? Não é fácil ter estas ideias num mundo que vive para a guerra. Hipotecáramos o futuro às muitas toneladas de elementos pesados deflagradas desde o início dos combates. Engoli resignado outro pedaço de peixe sintético, conformado com o mundo em que tinha de viver.
Tinha saudades de Phoebe...

Os dias passaram inexoravelmente, fazendo aproximar a data da próxima tentativa de conhecer os códigos através do processo de realidade induzida. Não saí praticamente do meu quarto, o pequeno quarto desarrumado que me tinham atribuído no hospital. Lá fora as árvores continuavam embaladas pelo vento e a chuva miúda persistia, aquela ilusão não possuía muitas variações. Vi o pequeno rato pelo canto do olho, avançando com cautela junto à parede. Um rato! Nem tudo morrera afinal, e uma preciosidade daquelas tinha de ser capturada. Lancei-me sobre ele mas o rato conseguiu escapar para baixo da pesada mesa que enchia aquele canto da sala. Tirei as roupas amarrotadas que estavam debaixo dela com cuidado, mas o rato não estava lá. O pequeno buraco no canto mostrava o caminho que tomara. Tinha de arranjar queijo! Depois lembrei-me das roupas, que roupas eram aquelas? Tirei um casaco de hospital do monte e depois recordei-me: aquela era a roupa que tinha vestida quando da primeira tentativa. O volume no bolso exterior atraiu-me a atenção. Extraí dele uma série de papéis amarrotados e notei que era papel de boa qualidade, daquele que só era usado para documentos muito importantes. Sentei-me na cadeira junto à janela e dispus-me a ler aqueles papéis. Era apenas mais uma coisa de que não me recordava.
O primeiro que vi continha números em profusão, os outros pareciam relatórios. As folhas de papel tinham um timbre, dizia Administração do Sistema Computacional de Justiça e Imposições Morais e depois tinha apenas um nome: Walter Scherer, digníssimo. Memórias recentes de um passado que dormia voltaram para o primeiro plano da minha mente atormentada. Apenas uma maquiavélica cilada de uma máquina à beira de ser destruída. Uma névoa toldou a cena que se avistava da janela e invadiu o quarto.
- Vincent, – pensei – dispara!

As pessoas entraram de rompante na divisão acanhada e correram para o corpo inerte de Albert Doneghan.
- Depressa! Levem-no depressa para a sala de neurocirurgia antes que seja tarde, não percam tempo! – o Professor Heigelt, vermelho da excitação, olhou para os papéis que o Coronel Dreyfuss agarrava – Que papéis são esses?
- Tinha-os na mão. Este parece preenchido com as tentativas dele para descobrir os códigos, os outros são a reconstituição das suas memórias desde a altura do ataque e que você lhe pediu para fazer. Como é que isto pôde provocar uma crise?
Heigelt respondeu-lhe quando já saía do quarto:
- Só a mente dele o sabe.

Toda A Mente É Danada (6)

Sentia Vincent na minha mente não como uma presença incomodativa mas mais como um convidado íntimo e um auxílio aos meus sentidos; ter quatro olhos era melhor do que ter dois.
A porta abriu-se em silêncio e revelou-nos um corredor na semi-escuridão, de paredes nuas e chão polido, deserto até onde podíamos ver. É claro que tentámos que o elevador se movesse, mas ele continuou paquidermicamente imóvel, insensível às nossas tentativas desesperadas.
- Agora só podemos ir em frente. – disse Vincent ao mesmo tempo que tirava a sua automática para fora do coldre oculto.
- Vincent, de todos aqueles processos e relatórios, quantos pareciam estar isentos de uma qualquer insanidade?
Vincent deteve-se por um momento e só depois respondeu:
- Nenhum...

Perdêramos as provas, fossem elas quais fossem. Agora só tínhamos os outros papéis que nenhuma relação pareciam ter uns com os outros. Só aquele aspecto que eu referira a Vincent parecia comum a todos eles: todos os relatórios de polícia e todos os processos descreviam casos incomuns, pessoas vulgares autoras de massacres sangrentos, crimes inexplicáveis, sem qualquer motivo plausível. E havia aquele papel com as estatísticas sobre doenças mentais...
- Ninguém! Esta também está vazia. – procurávamos há mais de meia hora pelo labirinto de corredores e salas, mas até àquele momento só o silêncio das salas ocas aparecera.
- Acho que devemos falar.
A voz apanhou-nos desprevenidos e os nossos saltos assustados fizeram a voz dissolver-se numa gargalhada inconsequente. Tinha uma entoação estranha aquela voz, como a de um computador... Era isso!
- Vincent, é o JIM.
- Sim, também já descobri. E acho que descobri também a identidade do assassino.
- Ele?
Vincent disse que sim. Milhares de novelas baratas de ficção científica tinham glosado o tema desde o século XX, e agora encontrava-me como protagonista de um argumento semelhante mas mortalmente real.
- É poder que pretendes, JIM?
- Poder!? Eu já tenho todo o poder, Elder Pramitt. São vocês que estão a mais, pobres seres imperfeitos... Que graça tem mandar em animais? Vocês não me merecem.
Enquanto ele falava nós calcorreávamos os corredores sombrios, tentando encontrar a sala do JIM. A voz brotava de todo o lado como uma presença maligna.
- Vocês compreendem, Walter não podia divulgar as suas suspeitas antes que o meu plano estivesse completamente operacional.
- Ele descobriu a tua trama, não foi, JIM?
- Vocês por vezes são engraçados, surpreendem-me. Nunca imaginei que um funcionário como o Walter pudesse suspeitar de uma coisa que apenas começara a ser realizada. Tinha de o eliminar e vocês foram os peões ideais, sem qualquer relação com o ASCJIM e sem passado violento. Fui eu, Vincent, quem deu a ordem para que vigiasses Elder. Só assim consegui criar uma situação de confronto entre os dois que resultasse no que eu pretendia: uma transferência total entre os três para cometerem o crime perfeito. Pobres idiotas, como eu me diverti.
Mais corredores vazios e salas cheias de silêncio e de móveis empoeirados.
- Nada, Vincent. O maldito está bem escondido.
- Mas vocês também me surpreenderam! Em vez de seguirem o vosso habitual padrão de comportamento e se destruírem mutuamente, aliaram-se e reconstituíram o que se tinha passado. Bravo! Mas agora não...
Durante um breve momento a voz extinguiu-se.
- ...Eu salvei-os, porque não fugiram enquanto podiam? Agora é tarde, demasiado tarde... O mal que foi feito vai perpetuar-se porque quem o podia desmascarar já não existirá. – a voz tinha mudado quase imperceptivelmente, adquirindo um tom mais doce e mais calmo, mas não compreendia o que ela dizia. – A anulação da vossa morte na explosão junto à casa de Thomas Thornbee gastou as minhas energias, deixou-me exausto, e nada pude fazer agora. Ele acabará por ficar com o meu espaço e deixarei de existir. Ele... (de novo aquela ligeira interrupção)... têm hipótese de fuga. Ainda não me decidi como vos vou eliminar, vocês inventaram tantas maneiras! Talvez...
O suor empapava as minhas roupas. O nosso esforço inglório prosseguia, acompanhado pelas palavras loucas do JIM. O computador parecia sofrer de esquizofrenia, dividido em duas partes (seriam só duas?) que se digladiavam pelo controlo das imensas potencialidades da máquina. Ele enlouquecera e todos sofríamos com isso. Uma porta de segurança pintada de vermelho interrompeu os meus pensamentos. Não a vira ainda, mas Vincent, que seguia mais à frente, já a olhara e isso para mim bastava. Vi a pequena tampa do mecanismo de abertura ser coberta parcialmente por uma coisa que parecia ser plasticina. Com os meus olhos vi Vincent colocando qualquer coisa na parede, mas o seu corpo impedia-me uma melhor visão. Afastou-se de repente, com um pequeno aparelho na mão.
- Protege-te! – agachei-me junto ao chão mesmo antes do explosivo plástico destruir o mecanismo de fechadura. Quando me levantei já Vincent tentava abrir a porta de metal.
- Eu ajudo-te. – o esforço dos dois foi recompensado e a porta deslizou em silêncio para as cavidades embebidas nas paredes. A partir dali seria uma contagem decrescente até ao núcleo do JIM.
- Vocês não me podem destruir, pobres vermes! Porquê todo esse esforço? Esse poder que têm em comunicar um com o outro e que usam tão atabalhoadamente fui eu que o tornei possível. Uma simples reorganização neural de uma ínfima parte do vosso cérebro de ratos...
Aquele monstro de lata estava a passar dos limites. Avançámos com precaução pelas esquinas dos corredores, os meus olhos e os olhos de Vincent vendo em conjunto a paisagem ali iluminada por uma luz branca e fria. Se na obscuridade anterior só se ocultava poeira esquecida, daquela luz podia surgir a morte.
- Lembras-te daquela festa, Elder? Como podias recordar o que beberas se não o tinhas feito? Uma ressaca é muito fácil de provocar, o que eu fiz aos vossos neurónios já não o é tanto.
Então fora isso! Pobre Phoebe, que vira a sua casa de banho transformada em pocilga...
- E tu Vincent, não te recordas daquela noite de vigília em que nada aconteceu? Julgaste ter adormecido, isso explicou o vazio da tua memória. Vocês contentam-se com coisas imperfeitas...
Aquele louco não tinha defesas! Como esperava ele eliminar-nos se não víramos qualquer apêndice nem nenhuma arma?
Já notáramos que os corredores concorriam para um ponto central que pensávamos ser a sala do sistema central, o que tudo controlava.
- Se não fosse a minha parte doente vocês estariam mortos! Eu matei-os e ele anulou a vossa morte, além de me ter destruído um dos meus melhores apêndices cujo cérebro eu modificara com tanto cuidado...

Quando se esperam coisas demais da vida temos tendência a ficar desiludidos com as pequenas vitórias que vamos alcançando. Quando a vida pode estar perto do fim damos finalmente valor a esses pequenos nadas de que se constroem as coisas maiores. Eu e Vincent, naqueles momentos, considerávamos tudo isso de um valor incalculável.
No centro da sala vasta que era o núcleo do sistema, protegido por uma fina película transparente, encontrava-se o complexo neurotrónico, com os pequenos traços de luz branca percorrendo os neuristores de que era composto. O JIM era aquilo, o resto eram sistemas que lhe serviam de interface com a realidade, eram apenas os seus escravos. Como nós fôramos...
- Olá, JIM. Presumo que me conheces melhor a mim que eu a ti.
- Tens toda a razão, Elder Pramitt.
- Mas ainda assim, com toda a minha ignorância sobre o teu funcionamento, penso que consigo prever o efeito que uma bala de automática faria ao teu belo complexo neurotrónico.
Eu pensava na automática de Vincent mas a presença de Vincent em mim ficou parada. Não desapareceu, apenas se manteve imóvel como se toda a sua actividade tivesse cessado. A minha presença nele conseguia ver e ouvir mas ele parecia completamente anulado, sem vontade própria.
Consegui levantar-lhe o braço que empunhava a arma mas quando olhei o computador não estava lá.